A "Dissonância Afetivo-Legal": Por Que a Lei Considera o Seu Enteado um Estranho (e Como Mudar Isso)

Descubra por que, para a lei brasileira, um enteado não é herdeiro. Entenda a "dissonância afetivo-legal" e conheça as estratégias para incluir o seu enteado no seu planejamento sucessório e protegê-lo.

PLANEJAMENTO/SUCESSORIO

Alvaro Silva

10/21/20254 min read

Família Mosaico
Família Mosaico

As famílias mudaram. O modelo de "família mosaico" ou reconstituída — onde um ou ambos os parceiros trazem filhos de relacionamentos anteriores — é uma realidade social crescente, unida por laços de afeto, convivência e cuidado. Para si, o seu enteado é, em muitos casos, como um filho.

Mas aqui reside uma verdade dura e contraintuitiva: para a lei sucessória brasileira, na sua configuração padrão, o seu enteado é um estranho.

Esta perigosa desconexão entre a sua realidade afetiva e a consequência jurídica após a sua morte é o que chamamos de "dissonância afetivo-legal". Sem um planeamento proativo, todo o amor e cuidado que você dedicou ao seu enteado pode ser legalmente ignorado, com consequências devastadoras.

Neste artigo, vamos explicar por que a lei opera desta forma e, mais importante, mostrar-lhe os caminhos para alinhar a sua estrutura legal com a sua verdade familiar.

Por Que o Enteado é um "Estranho na Linha Sucessória"?

O direito sucessório brasileiro baseia-se na "ordem de vocação hereditária" (Art. 1.829 do Código Civil), uma hierarquia estrita de quem tem direito a herdar na ausência de um testamento. No topo desta hierarquia estão os "herdeiros necessários": os descendentes (filhos, netos), os ascendentes (pais, avós) e o cônjuge/companheiro.

O seu enteado não se encaixa em nenhuma destas categorias. O vínculo que os une é de "parentesco por afinidade", que, para a lei, não gera direitos sucessórios automáticos.

A consequência prática disto é brutal:

Se você falecer sem deixar um testamento, mesmo que não tenha outros filhos, pais ou cônjuge, o seu enteado não herdará nada. A lei prefere entregar o seu património a parentes colaterais distantes (sobrinhos, tios, primos) ou, na ausência destes, ao Município.

A lei, na sua omissão, cria um paradoxo: prefere beneficiar um parente distante ou o Estado em detrimento de alguém que você criou como filho.

A Inércia é Uma Escolha: Os Riscos de Não Agir

Não fazer nada é uma escolha ativa pela exclusão do seu enteado. As consequências podem ser:

  • Exclusão Patrimonial Completa: Todo o seu património será destinado apenas aos seus herdeiros legais (filhos biológicos, por exemplo).

  • Conflitos Familiares Destrutivos: A ausência de um plano claro pode transformar o luto num campo de batalha, onde o seu cônjuge se vê na posição delicada de ter de defender os interesses do filho dele (o seu enteado) contra os dos seus próprios filhos.

  • Dilapidação do Património: Um inventário litigioso é caro e pode forçar a venda apressada de bens para pagar custos, destruindo parte do legado.

Como Mudar a Realidade: Os Caminhos para a Inclusão

Felizmente, existem ferramentas jurídicas poderosas para "traduzir o seu afeto" e garantir a proteção do seu enteado. Os caminhos dividem-se em duas grandes estratégias:

1. A Via Patrimonial (Incluir na Sucessão):

Esta é a forma mais direta de garantir que o seu enteado receba parte do seu património.

  • Testamento: Você pode usar a sua "parte disponível" (os 50% do seu património de que pode dispor livremente) para deixar qualquer bem ou percentual para o seu enteado, tratando-o de forma equânime a um filho biológico, se assim o desejar.

  • Doação em Vida: Você pode doar bens em vida, respeitando sempre o limite da sua parte disponível para não prejudicar a herança dos seus herdeiros necessários.

  • Seguro de Vida e VGBL: Como estes produtos não são considerados herança, você pode nomear o seu enteado como beneficiário de 100% do capital, e esta decisão não poderá ser legalmente contestada pelos seus filhos biológicos.

2. A Via da Filiação (Transformar em Herdeiro):

Esta é uma decisão mais profunda, que transforma o vínculo afetivo num vínculo legal pleno.

  • Filiação Socioafetiva: É o reconhecimento jurídico de que a relação de cuidado e afeto constitui uma filiação real. Uma vez reconhecida (em cartório para maiores de 12 anos, ou via judicial), o enteado torna-se seu herdeiro necessário para todos os efeitos, com os mesmos direitos de um filho biológico.

  • Adoção Unilateral: É o ato de adotar o filho do seu parceiro. Este processo é exclusivamente judicial e, ao contrário da filiação socioafetiva, rompe o vínculo jurídico do adotado com o genitor biológico que é substituído.

dois caminhos
dois caminhos

Conclusão: O Planeamento Como um Ato de Justiça Familiar

A "dissonância afetivo-legal" é uma falha da nossa lei, que ainda não se adaptou à realidade das famílias mosaico. Mas a inércia não precisa de ser o seu destino.

O planeamento sucessório, neste contexto, deixa de ser uma questão de otimização de impostos e torna-se um ato de justiça e reconhecimento. É a sua oportunidade de usar as ferramentas do direito para garantir que a sua estrutura patrimonial reflita a sua verdadeira estrutura familiar, protegendo todos aqueles que você ama.

O PRÓXIMO PASSO É SEU.

Agora que entendemos porquê o enteado está legalmente desprotegido, no nosso próximo artigo vamos explorar como protegê-lo na prática, mergulhando no "Sistema Sucessório Paralelo": as ferramentas, como o VGBL e o Seguro de Vida, que operam fora das regras do inventário.